Leia as primeiras páginas do livro "Enquanto esperei por ti"
"Enquanto esperei por ti" segue a linha dos livros "Diário da tua ausência" e "O dia em que te esqueci" da autora portuguesa Margarida Rebelo Pinto.
Sinopse: Soraia tem 40 anos, é divorciada e vive com o filho, Martim, que é o seu maior amor. Depois de um casamento falhado, prometeu que nunca mais se perderia por ninguém. Mas apaixonou-se por alguém que nunca soube ficar. Guilherme, mais novo, inconstante, deixou nela marcas profundas. Esta é a carta que ela lhe escreve; não para tê-lo de volta, mas para se libertar. Uma história sobre amores que não resultam, a força da maternidade, o reencontro consigo mesma e a esperança num recomeço possível.Porque há amores que partem, mas deixam páginas que nunca se esquecem.
Leia agora as primeiras páginas:
A |
primeira vez que estivemos juntos foi num
daqueles jantares que eu nem queria ter ido. A Sílvia, minha colega de
departamento e tua prima (sim, vai ficar escrito, porque ninguém aqui vai ser
apagado), arrastou-me. Disse que ia ser leve, divertido, que eu precisava de
sair de casa, que já tinham passado dois anos desde o divórcio. E eu fui.
Estava cansada, de tudo. Até da solidão. E tu apareceste com aquela camisa
azul, mangas dobradas até aos cotovelos, e um copo de vinho tinto que nem
gostavas, só porque dizias que era mais adulto. Estavas sempre a tentar parecer
mais velho. E eu tentava parecer menos ferida.
Durante esse jantar, não falámos muito.
Mas no fim, quando toda a gente se foi embora, foste tu quem ficou a ajudar-me
a arrumar as taças. Disseste uma frase qualquer sobre os meus olhos, e eu nem
sabia que alguém ainda reparava neles. Foi ali, entre garrafas vazias e
migalhas de pão, que começaste a desmontar-me.
Não aconteceu tudo de uma vez. Foste
entrando devagarinho, como quem não quer atrapalhar. Mensagens à noite,
conversas sobre livros que nunca acabaste, silêncios partilhados à beira-mar e
aquele dia em que foste buscar o Martim à escola porque o meu carro decidiu
morrer na hora errada. Ele ficou rendido. Disse que eras “fixe, mas meio despistado”, porque te esqueceste de o ir buscar à
hora certa e ainda te enganaste na mochila. Mesmo assim, naquele dia, vi nos
olhos dele um reflexo que me assustou: esperança. A mesma que eu já tinha
deixado de alimentar.
Tu eras leve. Mas não eras superficial.
Tinhas perguntas que me faziam desenterrar coisas que já estavam soterradas há
anos. Uma vez perguntaste-me se ainda acreditava no amor. E eu respondi-te com
outra pergunta: “Qual amor?” O que se
escreve nas canções ou o que sobra depois de vinte anos de silêncios numa
cozinha fria?
A verdade é que tu chegaste numa altura em
que eu já não esperava nada. Nem de mim, nem de ninguém. E talvez por isso
tenhas tido esse efeito: eras um imprevisto. Um erro bom. Um engano que eu quis
prolongar.
Mas tu nunca foste inteiro. Estavas sempre
com um pé dentro e outro fora. Uma espécie de exílio emocional, como se amasses
a ideia de mim, mas não fosses capaz de me habitar. Tinhas medo. E eu fingi,
durante demasiado tempo, que isso não me moía.
Houve aquele fim de semana em Melides. O
primeiro que passámos fora. Lembras-te? O céu estava encoberto, o mar revolto e
tu disseste que isso era “romântico à tua
maneira”. Eu ri. Achava graça a essa tua mania de ver beleza onde mais
ninguém via. Mas nessa noite, enquanto dormias, eu chorei. Não sei se
percebeste. Talvez tenhas sentido o meu corpo tenso, ou talvez estivesses
apenas a sonhar com outra vida qualquer onde eu não existia.
Nessa noite em Melides, a casa era
demasiado grande para nós. Tínhamos escolhido aquele lugar por impulso, uma
daquelas reservas feitas às três da manhã, num surto de fuga ao mundo. Eu
queria silêncio. Tu querias distância. Engraçado como, às vezes, essas duas
vontades parecem compatíveis, mas não são.
Levei um livro comigo: “Os Anos” da Annie
Ernaux. Tu não conhecias. Disseste que o título parecia deprimente. Nunca
percebeste muito bem essa minha mania de ler histórias que doem. Mas a verdade
é que há dores que me fazem sentir viva. E tu, por essa altura, já eras uma
delas.
Fizemos o jantar juntos, ou tentámos. Tu
não sabias cortar cebola, choravas mais do que eu. Eu ria, ria de um modo que
já não me era habitual. Depois sentámo-nos no chão da sala com pratos no colo e
oiço-te dizer: “Isto podia ser uma vida.”
Mas não era. E tu sabias disso. Disseste-o como quem diz uma hipótese remota.
Eu ouvi como quem agarra num balão que está prestes a voar.
Na manhã seguinte, acordaste estranho.
Ouvias mensagens no telemóvel com um ar ausente. Perguntei-te se estavas bem e
respondeste-me com um beijo rápido, daqueles que calam perguntas. Depois
inventaste que tinhas um compromisso urgente em Lisboa; uma reunião, uma
entrega, já nem sei. Saímos mais cedo do que tínhamos planeado. A meio do
caminho, ficaste em silêncio. A rádio fazia um esforço por animar o carro, mas
eu já tinha percebido: estavas a partir, mesmo estando ao meu lado.
Durante semanas, fingi que não vi. Que não
entendi. Que os teus afastamentos eram fases, que a tua instabilidade era coisa
da idade. Mas depois conheci a Inês.
Aquela noite no lançamento do livro do
Rodrigo, lembras-te? Tu chegaste atrasado, ela vinha contigo. Não disseste quem
era; apenas “uma amiga”. Mas o modo
como te inclinavas para lhe falar, o sorriso nervoso, o toque quase imperceptível
no cotovelo, era óbvio. E eu odeio quando as coisas óbvias nos são atiradas à
cara como se fossem enigmas.
Fiquei ali, quieta, fingindo interesse
numa conversa com o Miguel, aquele poeta insuportável que só fala de si.
Enquanto isso, via-vos ao longe, como se assistisse ao fim de uma história que
nem sequer teve direito a epílogo. Depois foste ter comigo, abraçaste-me com
culpa, e disseste: “Tu sabes que eu gosto
de ti, não sabes?” E eu respondi: “Sim.”
Como sempre. Sempre a dizer-te aquilo que querias ouvir.
Foi nessa noite que percebi que te poderia
perder. Não para a Inês. Para o teu medo. Para a tua incapacidade de permanecer.
Nunca me deixaste realmente; foste-te apagando devagarinho, até eu não ter mais
onde pousar a mão.
Voltei para casa com um nó no estômago. O
Martim já dormia, com a luz do candeeiro acesa, como eu lhe ensinei, para
espantar os pesadelos. Deitei-me ao lado dele, com roupa e tudo, e adormeci
assim, como se fosse possível acordar noutro tempo.
Naquela noite, deitada ao lado do meu
filho, senti uma paz estranha. Como se, por um instante, tudo estivesse exatamente
como devia estar. E talvez estivesse. Porque ali, naquele quarto pequeno, com
bonecos encostados à parede e lençóis de super-heróis, havia amor. Amor no seu
estado mais puro, simples, sem teatrinhos nem promessas adiadas. O amor mais
limpo que alguma vez conheci.
Durante muitos anos, achei que era uma
mulher difícil de amar. O meu ex-marido dizia isso com outras palavras, mais
polidas, mais socialmente aceitáveis, mas era isso que queria dizer: que eu
sentia demais, cobrava demais, queria demais. Mas a verdade é que ele é que
sentia de menos. Acordava ao meu lado como quem acorda ao lado de uma sombra; presente,
mas sem forma. Durante anos, adormeci ao som do seu silêncio. Um silêncio que
incomodava.
O Martim nasceu quando eu já não
acreditava em quase nada. Tinha trinta e um, um emprego que me consumia e um
casamento que se arrastava por inércia. Mas quando o pus nos braços, lembro-me
de pensar: “Está aqui. Finalmente.”
Como se fosse a minha única missão concreta neste mundo: cuidar dele. Ser o que
ninguém nunca foi para mim.
Nunca me vi como mulher de meias tintas.
Mas também não fui feita para clamar por atenção. Quando as coisas deixam de
ter alma, eu aprendo a sobreviver sem elas. Foi assim que deixei de me doer por
dentro, mesmo ainda estando casada. E foi assim que me despedi. Sem alarido,
sem drama. Apenas com uma mala feita e uma carta em cima da mesa da cozinha.
Uma carta com sete linhas. Secas. Objetivas. Onde escrevi apenas o essencial: “Já não somos. E tu sabes.”
Depois disso, aprendi a viver sozinha. A
ir buscar o Martim às segundas e entregá-lo às quintas, a fingir que não me
partia por dentro cada vez que o deixava. Habituámo-nos, os dois. Criámos
rotinas, códigos, piadas só nossas. Foi com ele que reaprendi a rir. E, com o
tempo, até o meu corpo me perdoou por o ter abandonado tanto tempo.
Foi nesse espaço — entre a recuperação e o
conformismo — que apareceste. Um contratempo bonito. Um erro que me soube bem.
E, durante um tempo, quis acreditar que tu eras a tal exceção. Aquele que chega
depois da tempestade para reerguer o que ficou de pé. Mas tu não vinhas com
martelo nem com pregos. Vinhas com palavras bonitas e uma presença fugidia.
Vinhas com promessas só até certo ponto. E isso, no início, pareceu suficiente.
Mas agora sei: não era.
E é por isso que escrevo. Não para te
culpar. Mas para me lembrar. Para organizar os estilhaços. Para juntar, numa só
carta, o que ficou espalhado em meses de idas e voltas.
No fundo, esta carta é o meu ponto final.
Mesmo que nunca a leias. Mesmo que continues a pairar em fotografias antigas ou
em músicas que ainda não consigo ouvir até ao fim.
Porque chegou a hora de recuar até onde
tudo começou. Muito antes de ti. Antes de nós. Antes até de eu saber o que era
não ser escolhida.
Vou voltar atrás. Para onde me tornei
mulher. Para onde aprendi que amar sem retorno é, muitas vezes, só outra forma
de solidão.
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