Leia as primeiras páginas do livro "O Dia em Que Disse Basta"

Um relato impressionante de uma mulher que viveu o pesadelo da violência doméstica durante vinte anos.


Sinopse

Após vinte anos de silêncios, abusos e medo, Laura escreve a carta que nunca teve coragem de enviar. Uma história realista sobre violência doméstica, sobrevivência e a força de uma mulher que, finalmente, disse basta.


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1.


   Sérgio,
não sei bem por que razão decidi escrever-te isto agora. Talvez porque faz hoje um ano que saí de casa. Um ano inteiro desde que fechei a porta pela última vez, sem olhar para trás, sem saber ao certo para onde ia, mas com a certeza absoluta de que já não podia ficar. Um ano. Parece uma vida inteira. E ao mesmo tempo, há dias em que me apetece gritar-te tudo aquilo que calei durante vinte e três anos. Nunca o fiz. Nunca tiveste coragem para ouvir. E eu nunca tive coragem para dizer. 
     Até hoje.
     Conhecemo-nos quando eu tinha vinte e um. Ainda andava na faculdade, trabalhava à noite num café para ajudar os meus pais com as contas, e tu apareceste ali como quem entra pela vida de alguém sem pedir licença. Tinhas aquele ar de homem feito, sabias o que dizias, fazias-me sentir vista. Eu, que sempre fui a certinha, a prudente, deixei-me levar por ti como uma miúda. E fui. Fui porque precisava de acreditar que alguém podia olhar para mim com desejo e com futuro. Fui porque não sabia ainda distinguir entre amor e admiração. Fui porque tu sabias conquistar. E eu estava cheia de vontade de ser conquistada.
     No início eras tudo aquilo que eu achava que queria. Mandavas flores para o trabalho, deixavas bilhetes no carro, esperavas por mim à porta de casa. Lembro-me de como os meus pais desconfiavam de ti. Achavam-te arrogante, convencido. Mas eu achava que era charme. Acreditava que aquele teu jeito mandão era só segurança. Que aquela tua obsessão em saber sempre onde eu estava era cuidado. Que a forma como me apertavas o braço em público era só paixão mal disfarçada. Deus me perdoe por ter confundido abuso com amor.
     Casámo-nos depressa. Demasiado depressa. Tínhamos pressa de construir, de provar ao mundo que estávamos certos. Eu achava que o amor bastava. Que um dia tu ias acalmar. Que aquela tua fúria em controlar tudo era só uma fase. Nunca contei a ninguém que chorava à noite, quando tu adormecias. Nunca disse a uma alma que comecei a ter medo de ti antes mesmo do nosso primeiro filho nascer. Tínhamos comprado aquela casa com varanda e vista para o mar. A nossa casa de sonho. Eu achava que os filhos te iam mudar. Que o nascimento do Tiago ia fazer de ti um homem mais terno, mais presente, mais paciente. Mas não fez. Fez o contrário. Tu viraste-te contra mim como se eu tivesse arruinado os teus planos. Começaste a dizer que eu já não era a mesma. Que estava gorda. Que era chata. Que só sabia falar do bebé.
     E eu, em vez de te enfrentar, calei-me. Porque estava cansada. Porque tinha um recém-nascido nos braços e ninguém a quem pedir ajuda. Porque já começava a sentir vergonha. Porque, apesar de tudo, ainda acreditava que eras um bom homem que estava só a passar uma má fase. E depois engravidei da Inês. E pensei: agora sim, agora vamos ser uma família de verdade. Mas tu não querias outro filho. Disseste-me que eu fiz de propósito. Que estraguei a nossa vida. E ali, naquela altura, eu percebi que o que tínhamos nunca foi amor; foi posse.
     Mas isto ainda não é o capítulo da raiva. Nem da dor. Isto é só o começo. Estou a escrever-te para que finalmente ouças o que nunca quiseste saber. Para que saibas, linha por linha, os anos que me roubaste. E, sobretudo, para que outras mulheres que um dia leiam isto percebam que o inferno pode começar com um ramo de flores.
     Senta-te, Sérgio. Ainda falta tudo.


2. 


   Lembro-me de cada uma das desculpas que arranjei para ti. As que inventei para mim e as que contei aos outros. Lembro-me de como disfarçava os olhos inchados com maquilhagem, de como sorria nas festas de família, de como dizia “está tudo bem, ele anda só mais cansado com o trabalho”. Lembro-me das vezes em que fiz de conta que não me tinhas chamado burra à frente dos nossos filhos, das vezes em que encolhi os ombros quando me chamaste inútil, histérica, ingrata. E lembro-me, com uma precisão que me envergonha, da primeira vez que me empurraste com força contra uma porta. 
     Tínhamos discutido por causa de uma mensagem no teu telemóvel. Uma rapariga qualquer, nem interessa o nome. Disseste que eu era paranoica, ciumenta, uma controladora. A ironia disso tudo: a tua especialidade sempre foi virar tudo ao contrário. Fazias-me duvidar do que via, do que sentia, do que ouvia. E eu, já tão moldada pela culpa, começava a acreditar que o problema era mesmo meu.
     Nessa noite, quando me empurraste, disseste logo a seguir: “Desculpa, foi sem querer”. Mas não foi. E eu sabia. Só que também não queria aceitar. E porque a violência não começou com murros, eu fui ficando. Porque a primeira agressão não foi física; foi emocional. Foi quando me disseste que eu só tinha valor por tua causa. Que sem ti eu não era ninguém. E eu, parva, acreditei. Tinha dois filhos pequenos, o meu ordenado não dava nem para metade das despesas, e tu fazias questão de me lembrar disso todos os dias. “Se te fores embora, ficas sem nada.” 
     Era isso que me repetias. Como um aviso. Como uma ameaça.
     Durante anos, vivi à tua sombra. Vestia-me como tu gostavas, falava com quem tu deixavas, cancelava jantares, evitava amigas, afastava-me da minha própria família para não te incomodar. Sempre a tentar manter a paz. Sempre a andar em bicos de pés para que os teus nervos não se acendessem. E os teus nervos acendiam-se por tudo: pelo jantar estar sem sal, por eu estar a rir ao telefone, por os miúdos fazerem barulho, por eu ter deixado um prato fora do lugar. A dada altura, a casa passou a ser um campo minado. Nunca sabíamos em que estado vinhas, o que te ia irritar, o que te ia fazer rebentar. E mesmo assim, eu continuava a dizer aos miúdos: “O pai está só cansado.” Desculpava-te. Justificava-te. Protegia-te até de ti próprio.
     Mas sabes o que mais me revolta hoje, agora que vejo tudo à distância? O medo que me metias era tão grande que eu nem conseguia dar nome ao que vivia. Nunca disse “estou a ser vítima de violência”. Achava que violência era só o que passava nas notícias. Sangue. Socos. Fraturas. E como tu alternavas os gritos com beijos, os insultos com desculpas, as ameaças com promessas, eu vivia num ciclo de negação e esperança. Tinhas essa capacidade doentia de me fazer sentir culpada pelas tuas falhas. E eu, exausta, acabava a pedir-te desculpa mesmo quando era eu quem sangrava.
     O pior de tudo é que os nossos filhos viram. Ouviram. Sentiram. Mesmo que eu fizesse tudo para os proteger, eles cresceram naquele ambiente de tensão constante. E sei que, por muito amor que eu lhes tenha dado, por muito colo e mimo, eles carregam hoje marcas que tu deixaste. E não, não vou poupar-te dessas verdades. Nem vou fingir que os traumas deles são só responsabilidade minha. Tu também estiveste lá. Tu também os ouviste chorar, escondidos no quarto. Tu também viste o medo nos olhos deles. E mesmo assim continuaste.
     Não escrevo isto para te comover. Escrevo porque preciso de me lembrar. Porque quero registar, com todas as letras, aquilo que vivi. Porque durante muito tempo achei que não tinha história. Que o que me acontecia não era grave o suficiente. Que havia mulheres em situações piores. Que eu devia aguentar. Que o casamento era assim. Que todos os casais discutiam. E isso, Sérgio, é o que mais me custa agora: ter normalizado o que nunca devia ser normal.
     É por isso que agora escrevo. Porque calar-me foi o maior erro da minha vida. E eu não me calo mais.





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