Não deixamos de sentir a saudade: acostumamo-nos com ela.
Duarte
Novembro. O vento sopra com intensidade lá fora.
Do céu pintado de cinza escuro, cai uma chuva torrencial que deixa a avenida
encharcada de água. Não se vê vivalma na rua. A foz e a avenida nunca
estiveram tão desertas.
O dia
de voluntariado está a correr sem percalços. Hoje é um dos poucos dias em que a
unidade oncológica está num clima apaziguado, tranquilo, sereno. Alguns doentes
conversam, felizes, na sala de convívio do piso, enquanto outros recebem
visitas nos seus quartos.
Quando
fixo o meu olhar no calendário da parede da sala de enfermeiros, recordo a data
em que partiste. Estás fora deste mundo há três meses, Mariana. Há três meses que
não ouço a tua voz, não vejo o teu sorriso, não sinto o teu cheiro, não sou
invadido por esse olhar apaixonado que me aquecia por dentro. Sempre me
disseram que o tempo cura, que o tempo ameniza, que o tempo resolve tudo. Hoje
sei que não é verdade. O tempo não apaga as nossas memórias nem nos faz
esquecer um grande amor. E a saudade, essa, também não passa. Nunca deixamos de
sentir a saudade: acostumamo-nos com ela.
E eu
sinto saudades tuas, Mariana. Sinto a tanto a tua falta. Releio as cartas que
me escreveste durante todos os anos que estivemos separados e o remorso
consome-me. É triste demais sentir o peso da culpa nas nossas costas. É muito
mau perceber que perdi tanto tempo com coisas inúteis, por medo e cobardia.
Perdemos anos de amor por uma grande estupidez. Hoje são as tuas cartas e as
memórias felizes que construímos juntos que me sustentam e que me ajudam a sobreviver
a este caos que é viver sem metade de mim. Tenho passado pelos dias sem
conseguir viver de facto. Só consigo desviar-me da solidão quando entro nesta
unidade hospitalar e me faço útil para alguém. Sinto-me útil aqui. Ajudar estes
doentes tem sido uma forma de me ajudar a superar a tua partida, de apaziguar o
meu coração, de amenizar o teu adeus.
Estes
doentes já fazem parte do meu quotidiano. Converso por longas horas com cada
um deles. Conheço-lhes as batalhas, as vitórias, as histórias, as várias vidas
que foram tendo ao longo da vida. Comovo-me com a tristeza imensurável dos
familiares que tudo fazem para os ajudar e abraço forte aqueles que quando saem
do hospital se desvanecem. O voluntariado tem-me salvado, tem-me fortalecido,
tem-me ajudado a perceber que na vida o mais importante é mesmo o amor, o que
fazemos pelos outros, a marca que deixamos no mundo, a mensagem que cada um de
nós deixa para os que cá ficam.
Termino de beber o café e começo a fazer a ronda pelos quartos. Paro em
frente do quarto 307. O teu quarto, Mariana. O quarto que viu a tua partida e
que me viu chorar a maior dor do mundo. Não consigo olhar para esta cama sem me
lembrar de ti, do sorriso imenso que fazias sempre que me vias entrar pela
porta, da tua presença que enchia o quarto de alegria. As gaivotas que amavas
observar ainda voam nas paredes do quarto. E eu ainda me arrepio sempre que
entro neste quarto e me sinto a viajar pelo tempo enquanto me recordo dos
momentos que vivemos aqui. As minhas memórias são como tinta fresca: bem
perceptíveis. Lembro-me sempre da noite em que vimos, juntos, o teu Titanic e
dos dias que passei, sentado na tua cama, a ver-te sonhar. E é quando me perco
nestas lembranças que sinto uma vontade incontrolável de voltar para trás, de
reviver tudo outra vez, de parar o tempo e eternizar cada momento ao teu lado. Porque
agora, de ti, só me sobram as memórias e o amor que me deixaste. De ti, só
tenho lembranças e fotografias. E, claro, as tuas cartas, que são a grande
prova de que o nosso amor, apesar de todos os obstáculos, existiu e valeu a
pena.
Foi neste quarto 307 que me perdi. E até hoje
ainda não consegui reencontrar-me. As imagens de ti, dentro daquele caixão,
ainda me perturbam, ainda assombram as minhas noites, ainda me impedem de
dormir sossegado.
O teu velório foi, sem margem para dúvidas, o
momento mais contundente da minha vida.
Lembro-me de ter passado o velório e o enterro
sem derramar uma lágrima. Não conseguia chorar, embora me doesse muito ver-te
no caixão. A tua pele gelada e o teu corpo duro como pedra, arrasaram-me. Só
depois do funeral é que fui capaz de entrar na tua casa e no teu quarto. Ainda
tinha o teu cheiro, as tuas roupas, as tuas coisas. Afundei-me na tua cama e
deixei-me levar pela tristeza, pela desolação que me corroía o coração. Chorei
tanto. Tanto. Senti-me tão desamparado. Tão vazio de tudo. Uma dor aguda, sem
fim, percorreu todas as veias do meu corpo, como se fizesse parte do meu
sangue. Hoje sei que essa dor tem um nome: arrependimento. Nunca me vou perdoar
pelos anos que estivemos separados por minha culpa. Nunca me vou desculpar por
ter regressado para a tua vida só quando descobri que estavas perto da morte. Hoje
sei que um dos maiores problemas da existência é agir tarde demais. E esse
arrependimento aliado à tua morte desmorona-me por completo.
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Os
dias seguintes foram um suplício. Os meus pais, o meu irmão, o senhor António,
a Helena e a Catarina tentavam erguer-me do vazio onde mergulhei desde a tua
partida, diziam-me sempre que tudo ia passar e que a vida sempre continua. Mas
só quem passa por uma grande perda é que sabe o quão difícil é aceitar o “a
vida continua”.
Nunca
nada irá suprir a tua falta, nunca ninguém ocupará o lugar vago que deixaste
aqui.
Com o
decorrer das semanas e a viagem à Jamaica, serenei. Percebi que não podia nem
devia fugir da dor. Enfrentar a perda e o vazio é essencial para seguir em
frente e superar os dias cinzentos em que só tenho vontade de afundar a cabeça
na almofada e chorar de saudades tuas. Chorar liberta-me. E apesar de,
geralmente, as pessoas acharem que chorar é um acto de fraqueza, eu considero
um acto de coragem. Vivemos como se fôssemos máquinas mas somos apenas humanos.
Temos que nos permitir chorar, sentir. Ninguém vive nada sem sentir nada.
Apesar de tudo, tenho-me esforçado para encarar a vida de forma mais
leve, procuro sempre ser positivo e valorizar o que tenho de bom e tentar ser
feliz com isso. Tu ensinaste-me que o segredo para todos os sucessos da vida é
apenas um: nunca desistir.
Aprendi tanto contigo, Mariana. Hoje posso dizer-te que me sinto mais
forte do que nunca. Estou mais evoluído, mais amoroso, mais compreensivo com o
mundo. Tu ensinaste-me a amar e jamais me esquecerei de que estar contigo era
como sentir o mundo em suspenso. As horas passavam e nós continuávamos no mesmo
lugar, como dois apaixonados fora de órbita. E vou agradecer-te sempre a forma
incondicional como me amaste. Tu permitiste-me ser quem eu sou. Tu permitiste
as minhas falhas, os meus erros. Tu entendeste que eu também sou humano, que eu
não sou uma máquina que cumpre as suas tarefas na perfeição. Tu permitiste-me
falhar para, depois, me ajudares a ser melhor. Porque tu sabias que só
aprendemos e evoluímos quando falhamos e erramos. Tu sempre me estendeste a mão
e ajudaste-me a ver o mundo de forma panorâmica. E é por tudo isto que te amo,
porque evolui contigo e porque tu me permitiste evoluir.
Lembras-te quando me disseste que a nossa história estava escrita nas
estrelas desde o dia em que nos conhecemos? Hoje sou eu que te digo que a nossa
história estará, para sempre, imortalizada pelo Universo. Podemos viver mil
vidas, podemos passar por outras terras, outros corpos, mas as nossas almas vão
caminhar juntas pela eternidade do tempo. O nosso encontro foi um verdadeiro
encontro de almas e o nosso amor, tão profundo e espiritual, não será vencido
pela morte. Estejas onde estiveres, eu sei que me esperas e que no preciso
momento em que os meus olhos se fecharem e tudo ficar escuro, serão os teus
braços que irão aparecer à minha frente para me guiar até ao céu onde, agora,
vives. E é por acreditar em tudo isto que me mantenho aqui, crente de que a
morte não separa ninguém, muito menos aqueles que se amam de verdade.
—
Sabes quantas vezes já disseste que me amas hoje? — questiona, sorridente, o
Gustavo.
—
Muitas, eu sei. — responde a Marcela. — É para compensar todas as vezes que
devia ter dito e não disse.
O Gustavo tem vinte e oito anos. Descobriu que
tinha leucemia há dois anos. Está internado aqui há um mês. O seu estado é
crítico e exige todos os cuidados. Vê na Marcela, a sua namorada, nos seus pais
e nos quatro irmãos o seu porto seguro. Todos os dias recebe visitas de
familiares e amigos, mas, segundo ele, o melhor momento do seu dia é quando
está com a Marcela. Os seus olhos irradiam luz quando a vê.
Pela
porta entreaberta do quarto, vejo o beijo apaixonado que o Gustavo e a Marcela
dão. Ela afasta-se em direção à porta, sem nunca desviar o olhar do Gustavo.
Sei que lhe custa cada despedida. Se dependesse da sua vontade, a Marcela
montava aqui uma tenda de campismo e ficava aqui com o Gustavo até ele se
libertar do cancro.
A
Marcela fecha a porta do quarto e cai num choro copioso, penoso, indescritível.
—
Marcela, estás bem? — pergunto ao mesmo tempo em que tento ampará-la nos meus
braços.
—
Cada dia é mais difícil fechar a porta deste quarto sem pensar que pode ser a
última vez. — a voz revestida de sofrimento deixa clara a sua dor e desolação.
—
Calma, Marcela. O Gustavo não vai gostar de saber que tu ficas neste estado
sempre que sais do quarto dele.
— Eu
tento ser forte, Duarte. Juro! Eu entro neste quarto e transmito toda a força
que possuo, mas, na verdade, eu estou um caco, sinto-me como um vaso de cristal
desfeito em mil pedaços. É terrível veres o teu grande amor a definhar numa
cama de hospital sem poderes fazer nada para o salvar. Esta impotência mata,
tortura. É um castigo.
— Pode
ser que ele encontre um doador compatível. Nunca podemos perder a esperança.
Nestes casos, a esperança é o nosso único alicerce.
— Tu
nunca perdeste a esperança quando passaste por isto?
— Não.
Foram dias difíceis, cruéis, insustentáveis, mas nunca me permiti perder a
esperança… sabia que se perdesse a esperança, perdia tudo.
— Pode
parecer exagerado, como se fosse uma frase extraída de uma filme piroso
qualquer, mas eu já não consigo imaginar a minha vida sem ele. Como é que se
vive quando se perde a pessoa que mais amamos na vida?
— Como
é que se vive? Não sei. Até hoje não encontrei a resposta. Se é que ela existe.
Mas, posso garantir-te que se vive, que se respira. Há uma força transparente que
nos ajuda a passar pelos dias, que nos vai conduzindo pelo tempo. É essa força
que nos ajuda a ultrapassar a neblina da tristeza. Perdi a Mariana há três
meses e ainda me sinto atordoado. Não te sei dizer se algum dia a dor e o
vazio passam. O que te posso garantir é que há uma força que nos empurra para a
frente. — a minha voz trémula começa a embargar. — Não é só a morte da Mariana
que me dói. É o futuro que me levaram e que já não vou viver com ela. Porque
quando a perdi, eu perdi o presente e o futuro. Perdi toda a vida planeada.
Todos os sonhos. Todos os planos. Não ficou nada. Só fiquei eu e uma vida nova
que eu não sei como agarrar… ou o que fazer com ela.
— É
dessa dor que eu quero fugir, sabes? Eu não quero perder o Gustavo e ganhar uma
nova vida sem ele. Porque sem ele nada mais faz sentido. Sem ele, para mim,
nada mais vale a pena.
— A
vossa história ainda pode ter um final feliz. Por muito impossível que possa
parecer agora, agarra-te a essa esperança como se fosse a tua única tábua de
salvação. Não vale a pena sofrer por antecipação. A vida tem tantas
reviravoltas. Nós nunca sabemos o que vai acontecer amanhã. Quem
sabe se amanhã não é descoberto um doador compatível e este pesadelo em que
vives, finalmente, termine?
— É a
única coisa que peço a Deus.
— Ele
está a ouvir-te. Sempre.
— Ainda
acreditas em Deus?
—
Acredito. Já me revoltei muito contra Deus. Mas hoje só lhe agradeço por me ter
permitido viver um amor tão bonito como o que vivi com a Mariana.
A
Marcela olha-me compassivamente, com os olhos cheios de lágrimas.
Conheço a dor que lhe corrói o peito.
A sua
dor é a minha dor e a de tantas outras pessoas pelo mundo fora.
Mas só
nos resta encarar a vida de frente e seguir caminho. O passado não volta, o
presente muda o futuro, a vida acaba, e o que fica são páginas de uma vida que
alguém, mais tarde, irá ler.
É por
isso que todos os dias te escrevo cartas, Mariana.
Um
dia, daqui a mil anos, essas linhas que te endereço serão o único resquício da
nossa história e do nosso amor.
O que fica depois da nossa partida, é tudo o que demos aos outros. É todo o amor
que espalhamos por aqui.
Sobre o autor:
Nasceu a 25 de fevereiro de 1992, na cidade de Vila Real. Viveu toda a sua vida na pequena aldeia de Fiolhoso, no concelho de Murça. Diz que o seu signo, Peixes, o define. Em 2011, concluiu o ensino secundário na área de Línguas e Humanidades. Apaixonou-se pelos livros quando sofreu o seu primeiro desgosto de amor e encontrou nos romances da autora Margarida Rebelo Pinto a sua maior inspiração. Romântico, sentimental e espiritualista, Fábio Teixeira usa a escrita para tocar o coração dos leitores, levando-os a refletir com as suas histórias.
Linda história de amor...
ResponderEliminarObrigado! 🙏❤
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