Um Natal Perfeito (Conto de Natal)


Um Natal Perfeito
Autor Fábio Teixeira

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 Lembrando o Passado 


    A minha mão desliza pela gélida e longa grade esverdeada. Os meus pés pisam a relva húmida onde se começam a amontoar os flocos de neve que caem do céu cinzento que me cobre. Sinto os olhos marejados, o coração a bater mais forte. A distância entre o presente e o passado diminui a cada passo que dou. 
    Não consigo desviar os olhos da escola onde estudei durante longos anos. Em cada canto dela existem memórias de momentos que a vida e o tempo jamais conseguirão apagar. Os passeios cobertos, onde tantas vezes me abriguei da chuva torrencial ou do calor infernal, continuam tão acolhedores como dantes. Por momentos, sem entender como, consigo ver-me a caminhar, de braço dado, com as minhas amigas. Consigo ouvir as conversas, os risos e as confidências que nunca ousámos falar em alta voz. 
    Dos meus olhos jorram lágrimas silenciosas, mas felizes. É engraçado perceber, agora adulta, que os anos de escola são os mais felizes, bonitos e livres que temos. Não há obrigações, não existem contas para pagar, problemas para resolver, preocupações constantes que aparentemente não têm solução. 
    Na adolescência a vida começa e termina todos os dias. O fim de um grande amor parece-nos a maior provação, a dor maior de todas, mas, sem saber como, no dia seguinte estamos outra vez de pé, seguindo a vida, crentes que outro príncipe encantado irá chegar e nos resgatar da alta torre que nos assombra os sonhos e a esperança. 
    Agora, com trinta anos, relembrando a adolescente que fui, percebo que neste momento sou muito mais fria e a minha capacidade para superar as agruras da vida é mil vezes mais frágil do que na minha adolescência. Se na adolescência conseguia enfrentar os meus problemas, na idade adulta só penso em fugir deles, ignorá-los e fingir que eles não existem. A mulher que hoje sou está longe de ser a adolescente forte, determinada, que mesmo com o coração desfeito em mil pedaços, seguia em frente, sem pensar muito no que o futuro lhe reservava. 
    Mas eu mudei quando me apaixonei irremediavelmente pelo Lucas. A partir daí fiquei mais vulnerável, mais exposta. Nunca mais fui a mesma pessoa, nem consegui reunir forças para combater mais nada. O amor pode dar-nos força ou acabar com aquela que temos, pode dar-nos a vida ou pode nos tirar, pode nos trazer a mais incrível das sensações como pode nos atirar para a valeta e nos deixar lá. Fiquei na valeta, abandonada, durante longos e intermináveis anos. Apaixonar-me pelo Lucas foi uma loucura, um ato de incongruência, uma ação involuntária completamente absurda com consequências trágicas. Perder a vida por amor é trágico, viver todos os dias à espera de um regresso é terrivelmente doloroso, passar noites em claro, sem conseguir pregar olho, é demasiado triste. As madrugadas são sempre tristes e quando se sofre por amor são o nosso maior pesadelo.   
   — Lara! Como estás? Há quanto tempo!
   Olho de relance para a figura que se aproxima a passos largos. Apesar da máscara que lhe cobre parte do rosto, é impossível não reconhecer os olhos esverdeados da Tânia, uma das minhas melhores amigas nos tempos de escola. 
   — Tânia! Há quanto tempo! 
   Cumprimentamo-nos com uma cotovelada. A era do covid veio afastar-nos ainda mais das pessoas. 
   — Vi-te de longe e percebi logo que eras tu! Estás igual! Tu nunca mudas! 
   — Olha quem fala! Nem parece que já és mãe. Continuas com o corpo danone de sempre. – sorrio-lhe, mesmo sabendo que ela não pode ver o meu sorriso largo e feliz por estar diante dela. 
   — Nem me digas nada! Os miúdos dão cabo de mim. Então nesta altura do Natal… já sabes como é, para todo o lado que vão, querem tudo e mais alguma coisa. Nem imaginas a lista astronómica de presentes que tenho lá em casa. – ela ri. 
   — E como é que estão as coisas contigo e com o Rafael? Vocês já estão juntos há alguns aninhos. – constato. 
   A Tânia fica em silêncio por algum tempo. O brilho dos seus olhos diminui. Aproxima-se do pequeno banco de madeira, limpa o manto de neve que já o cobriu, e senta-se. Sigo-lhe os gestos e sento-me também. 
   — Estavas tão séria a olhar para a escola. Tens saudades? 
   — Às vezes gosto de vir até aqui, olhar para dentro da escola, pensar na pessoa que eu era, nos sonhos que eu tinha… relembrar o futuro que achava que ia viver. Vir aqui, olhar para a escola, é revisitar-me. 
   — Eu percebo. Há alturas na vida em que sentimos uma vontade incontornável de voltar ao passado ou de refletir sobre o caminho que estamos a percorrer. E esta época natalícia também é propícia a isso. — A Tânia centra o seu olhar em mim. — Mas, do que me recordo, tu até nem tinhas muitos sonhos. Se tinhas, nunca me contaste! 
   Esboço um sorriso triste por baixo da minha máscara. 
   — E, de facto, nunca tive grandes sonhos. A única vez que me atrevi a sonhar dei um tombo tão grande que nunca mais fui capaz de sonhar tanto. 
   — Estás a falar do Lucas? 
   Bingo. Acertou em cheio. 
   — Bateu-te forte. 
   Aceno afirmativamente com a cabeça. 
   — Como qualquer amor verdadeiro, bate sempre forte. E a dor depois também é mais forte. É como uma ferida que quanto mais profunda for, maior é a dor que causa. É por isso que gostava de amar de forma rasa. 
   A Tânia arqueia as sobrancelhas, perplexa. 
   — E como é que se ama de forma rasa? 
   — Ama-se sem esperar nada do amanhã, do depois de amanhã, do daqui a dez anos. Ama-se sem planear um para sempre que, todos sabemos, nunca se concretiza. Ama-se sem fazer planos, nem promessas. Ama-se sem ilusões. Ama-se sem sacrifícios, sem abrir mão do mundo por causa daquela pessoa. 
    — Mas o amor é exatamente o oposto disso tudo. Ninguém consegue amar sem acreditar que vai durar para sempre. Ninguém constrói uma relação acreditando que amanhã ela vai acabar. Quando se ama alguém, no nosso coração, o fim não existe. 
    Permaneço em silêncio, sem conseguir encontrar palavras que construam uma boa resposta. A minha veia romântica quer acreditar nos contos de fadas, no felizes para sempre, na ideia de que todos os verdadeiros amores, por mais obstáculos que enfrentem, vencem tudo e todos. Mas a vida, essa faz-me entender, todos os dias, com a ausência do Lucas, que nem todos os verdadeiros amores vingam, nem todos conseguem chegar ao “felizes para sempre”. Quando se ama sozinha, o amor torna-se um pesadelo difícil de suportar. E eu vivo neste pesadelo há anos e por mais voltas que dê à minha vida, nada nem ninguém consegue apagar o Lucas do meu sistema. O meu coração é dele desde o dia em que nos cruzámos. E provavelmente será sempre. 
   — Depois de tantos anos, tu ainda o amas… Sofreste tanto por ele. Lembro-me tanto das caminhadas que fazíamos à volta da escola, das lágrimas que deixaste cair por ele. Eu sempre te disse que ele gostava de ti, sempre te incentivei a esperar por ele, mas, já passou tanto tempo, Lara. 
   — Eu não vivo à espera dele. Mas sinto, todos os dias, que falta um pedaço de mim. É como se me sentisse amputada, entendes? É um vazio imenso que eu não consigo preencher com nada. 
   — Tu tem-lo visto? 
   — Não. E também não procuro saber nada dele. Não vou às redes sociais dele, não pergunto a ninguém por ele… tento desviar-me de tudo o que esteja relacionado a ele… é tudo o que posso fazer para tentar esquecê-lo. 
   — Não consigo imaginar o que é amar uma pessoa dessa forma sem a ter nos nossos braços. Deve ser horrível! Uma provação difícil de suportar. 
   — O tempo ameniza todas as dores, suaviza todas as feridas. Mas, e tu? 
   — Eu?
   — Tânia, eu já percebi que tu também não estás bem. Há aí alguma coisa a atormentar-te. 
   De novo, o silêncio. A Tânia olha em redor. Perde o olhar na escola, na farmácia, nas luzes que iluminam a rotunda de boas-vindas à vila. Permito-lhe o silêncio, o tempo todo que precisa para se abrir comigo. 
   — Sabes quando tens uma vida, que aos olhos dos outros, é feliz e completa, mas tu não a sentes, nem a vês, dessa forma? Eu sinto-me aprisionada numa vida que não me pertence. Estou com o Rafael por estar. Já não sinto nada por ele. Será sempre o pai dos meus filhos, mas é só isso. 
   — Por que não te separas? 
   — Porque toda a gente que me rodeia diz que isso é uma loucura, um ato de egoísmo, que não faz sentido abandonar um homem que me trata bem e que não devo desestabilizar os meus filhos com um divórcio. E, se calhar, eles até têm razão. Mas eu não me sinto feliz. E está cada vez mais difícil apresentar sorrisos quando só quero chorar. Não sei o que fazer, sinceramente. 
   — A vida é curta demais para adiarmos a nossa felicidade, Tânia. Do que me recordo, tu nunca o amaste. Nunca foi aquele amor, o grande amor. 
   — Às vezes encostamo-nos a uma pessoa para contornar o nosso medo de ficarmos sós…
   — É… Mas não existe solidão maior do que estar ao lado de alguém e não conseguir ser feliz. 
   — Os meus filhos com uma lista infindável de prendas… e eu só a desejar encontrar uma solução para o que sinto. — ironiza. 
   — Há quem diga que as soluções estão sempre dentro de nós. Mas temos que saber ouvir o nosso coração. Tânia, ouve o teu coração. Os teus filhos serão bem mais felizes se sentirem que os pais estão bem. Juntos ou separados. 
   A Tânia olha-me com os olhos inundados de lágrimas que parecem cristais. 
   — Tinha tantas saudades tuas, minha amiga. Apesar de não sermos amigas que estão todos os dias juntas, somos amigas para a vida. Sempre. Tu sabes. 
   — Que pena que não nos podemos abraçar, não é? – faço uma careta tristonha. 
   — Estou tão cansada desta pandemia! 
   Fito o meu telemóvel. São quase cinco da tarde. Estou super atrasada.
   — Olha, eu adorei esta conversa, mas tenho que ir… tenho uma entrega para fazer. 
   — Entrega? 
   — Sim! Estou a fazer serviço voluntário. Levo medicamentos, compras… tudo o que for preciso… aos velhinhos que não têm como se deslocar até à vila. 
   — Tu sempre tiveste uma enorme predisposição para ajudar os outros. 
   — Ajudar os outros é uma forma de me ajudar também. 
   — Feliz Natal, minha amiga! Que a magia do Natal te conceda a realização de um dos teus sonhos. Quero tanto que sejas feliz! Mereces tanto! Tanto! 
   — Obrigada, Tânia! Eu espero que a magia do Natal te ajude a encontrar a solução para esse impasse em que vives. Adoro-te para sempre! Sempre!



O encontro com o passado


    Avizinha-se uma tempestade de neve. Quanto mais subo a montanha, mais a queda de flocos de neve se acentua. Mesmo assim, e porque a minha paixão por uma boa fotografia é maior do que o meu medo de ficar presa na estrada, paro o carro no miradouro que contempla a magnífica paisagem da vila e das montanhas que a rodeiam. O vento passa por mim a uma velocidade estonteante. Aproximo-me a passos longos até à grade de madeira que separa o miradouro da ribanceira. A vila está toda ela iluminada. Há luzes em todas as ruas e todas as casas parecem ter ganho vida. É disto que gosto no Natal, da iluminação, das casas cheias de família e amor, da magia que só conseguimos sentir nesta época. Só nesta época é que consigo acreditar que milagres podem acontecer e que os amores perdidos no tempo se podem resgatar de alguma forma. 
   Em escassos segundos, a neve amontoa-se no meu gorro, nos meus ombros, nos meus pés. A estrada já nem se consegue ver. Tiro a fotografia à vila iluminada, sacudo a neve da minha roupa e dos meus pés, entro no carro, e ponho-me a caminho. Ainda tenho que entregar os medicamentos à senhora Odete e ao senhor Francisco. Só depois poderei ir para casa, trocar esta roupa pelo meu confortável pijama, e ficar toda à noite a lambuzar-me de rabanadas, sonhos, ferrero rocher e mon cherri, não sem antes comer a maravilhosa roupa velha que a minha mãe faz todas as consoadas. 
   Encosto o carro no largo principal da aldeia. A pequena igreja está coberta de luzes que piscam e nos convidam a tirar uma fotografia. Assim o faço. Tiro várias fotografias, em vários ângulos. A casa da senhora Odete e o do senhor Francisco fica do outro lado do largo principal. Entre a casa e a igreja, mesmo no centro do largo, uma enorme árvore de Natal, enfeitada com luzes de várias cores, deslumbra-me. Não só pelo tamanho, mas, sobretudo, pela beleza. Ouço o instrumental do tema «Noite Feliz», e as lágrimas começam a rolar-me pelo rosto gelado pelo vento e pela neve. Aprecio as estrelas douradas penduradas nos galhos da árvore, onde também se amontoam os enormes flocos de neve que caem sem parar do céu pintado de negro. Tiro o meu telemóvel do bolso e fotografo a árvore tentando captar as várias cores que piscam, reluzem e me iluminam. 
  Do interior da igreja, ouço o coro religioso cantar o tema mais bonito do Natal: «Noite Feliz». As vozes angelicais, brilhantemente coordenadas e afinadas, emocionam-me de tal forma que eu fico petrificada a olhar para a árvore de Natal, como se o frio que se faz sentir me transformasse numa estátua de gelo.
   «Noite feliz, noite feliz, Ó senhor, Deus de amor, Pobrezinho nasceu em Belém, Eis na lapa, Jesus nosso bem, Dorme em paz, Ó Jesus, Dorme em paz, Ó Jesus»
  Ainda atordoada, dirijo-me até à caixa de correio da casa da senhora Odete e do seu marido, o divertido e amoroso, senhor Francisco. Coloco o pacote com a medicação dentro da caixa do correio e ligo-lhes a informá-los. Ficam minutos e minutos a falar comigo ao telefone e lamentam, incontáveis vezes, não poderem vir dar-me um abraço. 
   — Prometo que vamos dar um enorme abraço quando esta pandemia terminar. — garanto-lhes. 
   — Não vejo a hora, menina. — responde, do outro lado da linha, com uma voz terna e triste, o senhor Francisco. 
   — Vão passar o Natal sozinhos? – indago, com os lábios a tremelicar de frio. 
   — Não, não, querida! O meu filho e a mulher dele vêm passar connosco. E os meus dois netos também. Devem estar a chegar. 
   — Ainda bem! Eu desejo um feliz e abençoado Natal a vocês os dois e à família. Beijinhos. 
   Desligo o telemóvel e começo a caminhar até ao carro. Os meus pés estão cobertos de neve. As ruas também. E a neve continua a cair, sem pausa. Começo a assustar-me e com medo de não conseguir chegar a casa. 
  Em sentido contrário ao meu, caminha um rapaz alto, com um casaco de capuz e os olhos fixos no chão. Observo o seu jeito de andar e o meu coração rapidamente entra em erupção. As pernas ficam bambas e o ar começa a falhar. Podem passar mil anos, vou sempre reconhece-lo, seja onde for. Quando ele levanta a cabeça, e os nossos olhares se encontram, os meus pés ficam presos no chão e eu sinto-me incapaz de me mover um só milímetro. Apesar da máscara que lhe cobre metade do rosto, reconheço aqueles grandes olhos azuis e todo o brilho que eles emanam. 
   Já não via o Lucas há alguns anos. A vida que nos juntou, fez questão de nos separar e de nos levar por caminhos distintos que nos foram afastando cada vez mais. Apesar do tempo que já passou, nunca me esqueci do som da sua voz, do andar dele, dos olhos que sempre me enfeitiçaram, da sensação única de plenitude que só consegui sentir em todas as vezes que estivemos juntos. Lembro-me de estar com ele e o mundo inteiro deixar de existir e de as horas me parecerem apenas uns segundos. O Lucas é a minha alma gémea, e ainda que ele não me reconheça como a sua, eu sei, eu sinto, que independentemente das voltas que a vida der, o nosso destino já está traçado e que, um dia, hoje ou daqui a trinta anos, vamos ficar juntos. 
   Ele continua a caminhar na minha direção e eu fico sem saber de saio daqui a correr como uma doida ou se fico aqui, estagnada, à espera que ele quebre o muro que se instalou entre nós os dois. 
    — Lara?! – questiona, a medo. 
    — Lucas… - respondo, com a voz embargada de emoção. 
    — Está tudo bem?! Estás a chorar! 
   A emoção em revê-lo é tão grande que nem consigo conter as lágrimas que me saltam dos olhos como se fossem uma nascente de água. 
    — Está tudo bem! Não te preocupes. — desvalorizo. 
    — Mas estás a chorar… — constata. 
    — É do Natal. Nesta época fico sempre em modo «madalena arrependida». — gargalho. — Choro por tudo e por nada! 
    O silêncio instala-se entre nós os dois. Nem eu, nem ele, sabemos como contornar o muro que existe entre nós os dois. A vida não foi muito boa para nós. 
    — Já não nos víamos há algum tempo! O que estás aqui a fazer?
    — Eu vim aqui entregar uns medicamentos, naquela casa. — aponto com o medo indicador para a casa da senhora Odete. 
   — Na casa dos meus avós?! 
   — A senhora Odete e o senhor Francisco são teus avós?! 
   — São. Desde que nasci. — ri. 
   O destino trabalha a nosso favor quando quer que as pessoas de encontrem. Isto só pode ser obra do destino.
   — Não sabia. — respondo, atrapalhada. 
   — Mas sabias que esta é a minha aldeia. O meu território. — ele volta a gargalhar. Acho que está a tentar quebrar o clima tenso que nos envolve. 
   — Sim, claro que sabia.. sei, na verdade. 
   Das vozes do coro religioso continuam a ecoar os versos da música ‘Noite Feliz’. 
   — Tenho que ir embora. Os meus pais estão à minha espera. 
   — Eu acho que não vais conseguir sair daqui. As estradas estão cobertas de neve, o piso não está seguro, e, ao que parece, não vai parar de nevar tão cedo. 
   — Não me digas que vou ter que passar a noite de consoada sozinha no carro! 
   Já não dá para sair daqui. A neve cobriu os telhados, os galhos da árvore de natal, os muros, os carros... Não vou conseguir conduzir com os mais de dois palmos de neve que cobrem a estrada. 
   Os olhos do Lucas penetram os meus. Ele estende-me a sua mão. 
   — Vem comigo. 
   — Onde? 
   — Já vais ver. 
  Entrego-lhe a minha mão, o meu corpo, a minha vida, a minha alma, e vou. Com ele, e apesar de tudo, eu vou para qualquer lugar do mundo.  
   


Mergulhar num sonho feliz


    Saímos da aldeia por um caminho estreito, rumo à serra escura que ladeia a aldeia. As luzes que iluminam a aldeia vão ficando cada vez mais distantes. Eu e o Lucas não pronunciamos uma palavra, o silêncio só é cortado pelo som dos nossos passos a pisar a neve que nos cobre os pés. 
    Vou olhando para ele, de soslaio. 
    Caminho ao lado dele sem nem saber qual o destino. Sinto-me à espera de tudo e à espera de nada. A vida já me ensinou a não fazer planos, a não sonhar alto demais, a não fantasiar coisas. A minha cabeça é uma fábrica de sonhos, todos os dias sonho ficar com o Lucas para sempre, mesmo quando a vida me presenteia, todos os dias, com a ausência dele. Hoje ele está aqui, ao meu lado, consigo ouvir o som da sua respiração por trás da máscara. 
   Hoje ele está aqui. E, agora, é só o que me importa. 
   Sinto-o a fitar-me. 
   Encaro-o.
   Os nossos olhos congelam um no outro. 
   — Fecha os olhos. — pede. 
   Acedo, sem hesitar, sem perguntar, sem medos ou receios. Confio nele, apesar da vida nos ter separado, de estarmos há anos sem trocar uma mísera mensagem, apesar dele ser o responsável pela vida infeliz que tenho. Mas amar alguém é isto mesmo: entregar a vida, a alma, o corpo sem quaisquer receios ou reservas. Amar alguém é doar-nos ao outro.
   Ele coloca as suas mãos nas minhas costas e encaminha-me. Não vejo rigorosamente nada. A minha visão está tão negra como a cor do céu. 
   — Onde me vais levar? 
   — Já vais ver! Mas tenho a certeza que vais gostar. — afirma, com uma convicção na voz que não me permite, sequer, duvidar. 
   Dou mais uns passos. Tenho a percepção de que não saímos do mesmo caminho que estávamos a percorrer. 
   As mãos do Lucas deixam de estar pousadas nas minhas costas. Permaneço em silêncio e imóvel, à espera de alguma indicação. 
   — Podes abrir os olhos! 
   Abro os olhos num ápice. 
   Fico estarrecida com o que encontro à minha frente. 
   — Meu Deus! Lucas! É linda! — a minha fala é trémula, tal é a emoção. 
   Ele apenas se limita a sorrir. 
   A casa de vidro, iluminada por milhares de luzes brancas, enfeitada por estrelas e bolas coloridas, ladeada por enormes pinheiros bravos, com troncos imponentes, deixa-me sem ar, totalmente deslumbrada e emocionada. É como se diante de mim estivesse um quadro vivo, uma obra de arte impossível de descrever. 
   — Estás a chorar… — o Lucas olha-me de relance. 
   — Estou emocionada! Esta casa é linda, Lucas! Um sonho! 
   — É minha. Não sei se te recordas, mas era um dos meus sonhos. 
   Sem conseguir tirar os olhos da casa de vidro e das luzes, respondo-lhe. 
   — Lembro. Eu lembro-me de tudo. — asseguro, totalmente emocionada. 
   O silêncio instala-se entre nós por longos segundos. 
   As lágrimas continuam a rolar, silenciosamente, pelo meu rosto gelado pelo frio. 
   Aprecio a varanda com gradeamento em madeira. 
   No interior da casa, a lareira está acesa e na árvore de Natal reluzem luzes de todas as cores. No topo, a estrela dourada emite uma luz radiosa, quase como a luz do sol em dias de verão. 
   Respiro fundo, inalo o ar puro e gélido que entra pelo meu corpo e me sossega a alma e apazigua o coração. 
   — Desculpa. — O Lucas quebra o silêncio. 
   Encaro-o. 
   Ele baixa a máscara. 
   Continua igual, parece que os anos não passaram por ele. A barba sempre bem aparada, os lábios finos e cumpridos, onde tantas vezes quis perder-me, continuam tão atraentes como dantes. E olhos cor de mar, reluzentes, grandes, fundos, mantêm a mesma transparência, bondade e ternura. 
   Aparentemente, o tempo não mudou nada.
   — O quê? — respondo, enfeitiçada pelo seu olhar profundo. 
   — Por ter saído da tua vida, por ter estado ausente tantos anos, por ter-me afastado… por tudo! 
   — Obrigada! — digo, sem conseguir desviar o meu olhar do dele. 
   — Pelo quê? 
   — Por teres quebrado a ausência e por estares aqui, comigo, hoje. 
   Os nossos olhos não conseguem desprender-se. 
   A nossa conexão continua profunda e magnânima, perpetuada pelo tempo, nunca perdida nem apagada pela erosão da vida.
   — Engraçado… 
   — O que é engraçado? 
   — O tempo, quando estou contigo. 
   — Não estou a perceber… — digo, sem nem conseguir pestanejar. 
   — Quando estou contigo, não sei o que acontece, nem por que razão acontece, mas… — a sua voz, quebra. Os nossos olhos fintam-se outra vez. Eu encorajo-o a prosseguir. — É como se o tempo, o espaço, o universo, deixassem de existir e ficássemos só nós os dois. 
   Engulo em seco e sorrio. Apesar de me retribuir o sorriso, sinto-o constrangido. Falar de sentimentos, não é fácil. Para homens, então, mais difícil é. 
   — Vamos entrar? – questiona, atrapalho. 
   — Vamos! A neve está a pedir para nos refugiarmos antes que nos transformemos em bonecos de neve. — gargalho.
   — Bom, já que vamos passar a noite juntos, seria bom tirares a máscara. 
   Rio. 
   — Só se me prometeres que o covid não te atacou! 
   — Posso garantir-te que o covid não quer nada comigo. — ri.  — Mas seria má ideia ficarmos aqui, os dois, de quarentena?
   — Digamos que é uma ideia bastante tentadora!  
   Como duas crianças felizes, gargalhamos juntos, sem conseguir parar. Tanto eu como ele estamos felizes com o nosso reencontro e esta noite pode ser o início de uma nova vida para mim e para ele. 
   As pessoas tendem a odiar tempestades. Mas, às vezes, elas são um mal necessário para que as coisas boas possam vir depois. A tempestade de neve que me impossibilitou de voltar para casa foi a responsável por me trazer até aqui. E eu não podia estar mais feliz. 
  Apesar das coisas más que muitas vezes acontecem, o melhor que podemos fazer é nunca deixar de acreditar que coisas boas ainda podem acontecer. 
   



Noite feliz, noite de amor


   — Sim, mãe. Não te preocupes. Eu estou bem. Vou passar a noite aqui na casa de… — silencio a minha voz, sem saber como definir o Lucas. Observo-o, está a pôr a mesa. Anda a mil entre a sala e a cozinha. A minha mãe barafusta no telefone. Prossigo. — Vou ficar em casa de uma amiga. Se for possível, amanhã regresso a casa. Feliz Natal! 
   Desligo a chamada e pouso o telemóvel no grandioso e confortável sofá de pano. Acho que nunca me tinha sentado num sofá tão fofo e espaçoso. 
   Miro a árvore de Natal, os pequenos pais natal pendurados, as estrelas que reluzem com a mesma intensidade como se estivessem penduradas no céu, as luzes, de mil cores, que piscam sem parar. 
   — Gostas da minha árvore de Natal? 
   — É linda! Maior do que eu! — sorrio. 
   — Estive uma tarde inteira a montá-la. 
   Aceno, com a cabeça, demonstrando a minha compreensão. 
   — Precisas de ajuda? – questiono-o, ao vê-lo tão atarefado a pôr a mesa. 
   — Tu és minha convidada, não trabalhas! 
   — Os teus avós e os teus pais devem estar preocupados… 
   — Ah, não. Eu já lhes liguei a informá-los de que vou ficar em casa… — ele para no meio do trajeto cozinha-sala e fica, por longos segundos, a encarar-me. — Contigo! 
   Tiro o meu sobretudo preto e pouso-o em cima de uma das cadeiras que circulam a mesa. Vislumbro o móvel onde o Lucas tem a sua mega televisão. Observo a playstation, os mil jogos, a coluna JBL, a box, o leitor de DVD até fixar os meus olhos numa fotografia do Lucas, ainda adolescente. Recordo-me, particularmente, da camisola azul com as letras brancas que formam a palavra fly. Voar, em bom português. Vi-o vestido com esta camisola tantas vezes. Ficava-lhe bem. Quer dizer, aos meus olhos tudo lhe assentava que nem uma luva. O Lucas sempre foi um homem lindo. O mais lindo que eu já conheci. 
   — Que horror! Já viste o meu penteado nessa foto? E o estilo? Camisola de manga comprida com calções de ganga. — ironiza. 
   — Eram outros tempos, Lucas! A moda vai mudando. 
   O Lucas estende-me a sua mão com um copo meio de vinho branco. Seguro no copo e fito-o, petrificada. Ele enfeitiça-me, eu sinto o mundo parar quando estou perto dele. 
   — Vamos brindar! — diz, levantando o seu copo. 
   — Brindar ao quê? 
   — A nós. Ao Natal. Ao nosso reencontro. A esta noite. Podemos brindar por tantas coisas. 
   Brindamos a tudo isso, sem conseguir desviar os nossos olhos um do outro. O magnetismo que existe entre nós é enorme, qualquer pessoa que nos visse assim iria perceber. Na verdade, todos os que conviveram connosco na escola o perceberam. Por isso existiram boatos de que namorávamos e que estávamos apaixonados um pelo outro. Naquela altura, esses boatos eram o sonho que eu queria viver. Quis tanto agarrar esse sonho nos meus braços e envolvê-lo para sempre. 
   Ficar com o Lucas é, desde que o conheci, o meu maior sonho. O meu único projeto de vida. 
   — Posso fazer-te uma pergunta? 
   — Podes. Mas antes de conversas sérias, que eu sei que precisamos ter, anda… vamos conversar e comer. Estou com uma larica descomunal. — ele ri. 
   Sentamo-nos no chão, junto à mesa de vidro, que está entre o sofá e a televisão. 
   — Podíamos usar a mesa da cozinha, é maior. Mas acho que aqui estamos melhor. Temos televisão, a lareira… 
   — Estamos bem aqui. 
   — E o nosso jantar vai ter que ser isto. — ele aponta para a mesa que está repleta de travessas com rissóis, bolos de bacalhau, patas de caranguejo, camarão, rabanadas, sonhos, filhóses e uma divinal galette de rois, a tarte natalícia francesa. 
   — Esta comida dava para um exército inteiro! — brinco. 
   — A minha avó e a minha mãe entupiram-me a casa de comida. Supostamente, isto seria só para mim! 
   — Eu pensei que namoravas… — as palavras voam da minha boca sem que eu as consiga travar. 
   — E namorei… mas a relação acabou. 
   — E acabou porquê? 
   — Porque nada dá certo com a pessoa errada. 
   — Vocês pareciam ser um casal feliz. 
   Ele engole o rissol que tem na boca e fica especado a olhar para mim. 
   — Parecíamos? Tu sabias que eu…
   Interrompo-o. 
   — Que namoravas? Claro que sabia. As coisas que publicamos nas redes sociais chegam a todo o lado. 
   — Ah, claro. As redes sociais são o motor do mundo. Tudo se sabe e descobre por lá. 
   Esboço um sorriso apagado. Ele percebe a minha tristeza. 
   — A Gabriela foi importante na minha vida. Ajudou-me muito quando eu emigrei para a Alemanha. É difícil chegares a um país que nada tem que ver com o teu. É muito complicado. E não entenderes o idioma é o pior. 
   — Deve ser difícil emigrar. 
   — Muito. No início, precisas de ajuda para tudo. Tens que ter sempre alguém que te ajude a abrir uma conta no banco, que te acompanhe em consultas, a entrevistas… 
   — E a Gabriela ajudou-te… 
   — A Gabriela foi a minha companhia. E sempre nos demos bem, entendíamo-nos, sempre soubemos contornar os problemas que iam surgindo. 
   — Se era assim tão bom, separaram-se porquê?
   — Porque há um abismo colossal entre gostar e amar. E nenhuma relação sobrevive se não se amar de verdade a pessoa com quem estamos. Eu sou muito grato à Gabriela. Mas amor não é gratidão. 
   Encaro-o, sem conseguir pronunciar nenhuma palavra. Ouvi-lo dizer que foi feliz com outra pessoa, fere-me. 
   — E tu?
   — Eu fiquei sempre à tua espera. — atiro, sem medir consequências. O meu coração apodera-se da minha boca e fala tudo o que calou durante anos a fio. — Eu nunca mais fui capaz de me apaixonar por alguém depois de ti. Eu tentei conhecer outras pessoas, mas nunca resultou. Nunca mais consegui sentir nada igual ao que sinto por ti. 
   — Ainda sentes? — os seus olhos brilham feito estrelas. 
   — Sinto. — os meus olhos começam a arder e as lágrimas rapidamente encharcam o meu rosto. — Nunca te esqueci, Lucas. Nunca. Apesar de se terem passado anos sem saber nada de ti, sem receber de ti uma única mensagem, um único telefonema, um simples pedido de amizade no facebook. 
   — Ainda estás muito magoada comigo… 
   — Não. Senti mágoa no inicio, depois só consegui sentir saudade. Passei noites inteiras sem conseguir dormir, acordada, a lembrar-me de tudo o que vivemos juntos. A recordar as promessas, as conversas, os passeios. E a imaginar como seria viver o futuro que fantasiámos juntos tantas vezes. Tentei forçar-me a acreditar que conseguiria viver longe de ti, que conseguiria esquecer tudo o que vivemos juntos, tudo o que passámos, mas rapidamente percebi que isso seria impossível. — penetro os olhos, cobertos por lágrimas, do Lucas. — O meu coração é teu, Lucas. Sempre foi. Eu amo-te como eu nunca pensei ser possível amar alguém. Dentro de mim, mora um amor sem fim. E por mais que a vida me separe de ti, por mais anos que se passem sem saber nada de ti, nunca, nunca irei deixar de te amar. Ninguém consegue deixar de amar a sua alma gémea. Houve dias em que me afundei numa tristeza profunda… dias em que me senti a enlouquecer por não te poder ver, por não te poder tocar, por não te poder beijar. Hoje sei que posso lutar contra tudo aquilo que sinto, com todas as forças que possuo, mas eu vou amar-te a minha vida inteira. E só estar aqui, nesta casa, contigo, só de estar perto de ti, só de te ver, eu já me sinto a pessoa mais feliz do mundo. 
   — Eu fui um imbecil contigo, Lara. — diz, entre soluços. Dos seus olhos jorram lágrimas que deixam transparecer a sua dor, a sua angústia, todo o seu lamento. — Eu deixei que o medo me afastasse de ti. Eu permiti que a vida fosse mais forte do que tudo o que nos une. Tudo isso por causa do medo. 
   — Medo?! Medo do quê? 
   — Tu sabes o quanto o amor nos torna vulneráveis. 
   Assinto. 
   — Sei. — garanto, firme. 
   — Tu sempre foste tão especial, Lara. Foste a única pessoa no mundo que me olhou e que gostou de mim sem que eu tivesse que usar qualquer máscara. Tu sempre me estendeste a mão, sempre me apoiaste. Lembro-me de me ouvires queixar, durante horas e dias, sobre o mesmo assunto e continuares a ouvir-me como se fosse a primeira vez. Sempre foste tão paciente comigo. Toleraste tantos erros meus. Perdoaste-me tantas vezes. Deste-me tantas oportunidades para eu te fazer feliz. E eu sempre soube que eras capaz de qualquer coisa por mim. E a dimensão do teu amor assustou-me. Eu tive medo de nunca conseguir corresponder às tuas expectativas, de não ser suficiente. Era demasiado imaturo, demasiado inseguro. Naquela altura, eu vivia à procura de aprovação e do amor dos outros. Mas também tive medo de que ninguém entendesse e aceitasse a nossa relação. Não me perguntes porquê, não te sei explicar, mas, de alguma forma, na minha cabeça era assim que as coisas funcionavam. E depois a vida foi-nos empurrando para outros lados e eu deixei-me estar, acreditando que era assim que tinha que ser. Mas hoje, quando de vi no largo, eu percebi que aquela era a minha oportunidade de tentar mudar o curso da história, de tentar resgatar o nosso amor, de viver o que sinto, o que sempre quis. 
   O Lucas aproxima-se de mim, pega na minha mão, envolve-a nas suas. Dos nossos olhos jorram lágrimas. Acredito que, tanto eu como ele, chegámos à conclusão que a vida não foi correta connosco e com os nossos sentimentos. Mas a vida que nos apresentou não pode ser assim tão malévola, tão cruel. Talvez a nossa separação e estes anos de ausência nos tenham moldado e nos transformado para que, agora, neste momento, possamos recomeçar tudo outra vez, com mais maturidade, sem tantos medos a perturbar-nos os sonhos e o futuro. 
   — Eu amo-te, Lara. 
   — Repete. 
   — Eu amo-te. — repete, soletrando. 
   — Eu acho que estou dentro de um sonho e que vou acordar a qualquer instante! 
   E, sem que eu o espere, os lábios do Lucas colam-se nos meus, as nossas línguas começam a bailar juntas, as nossas almas conectam-se, e os nossos corações dançam ao som da mesma melodia. De repente, parece que subi ao céu, que mergulhei numa poção mágica e que a minha vida se transformou num sonho impossível de descrever. 
   Estarei eu dentro da magia que o Natal emana?
   O beijo é longo, demorado, intenso, prazeroso, cheio de paixão, de doçura, de vontade, de desejo, de amor. Se isto é resultado da magia do Natal que nos envolve, quero pedir-lhe que se estenda por toda a minha existência, que nos deixe ficar embalados nela para sempre. 
   

   Da coluna JBL ecoam os primeiros acordes da música ‘A Miragem’ do incrível Marcus Viana. Ouço esta música há vinte anos. Ainda eu era uma criança quando estes versos cheios de significado embalavam as cenas do amor impossível da Jade e do Lucas na novela “O Clone”. Recentemente, revi a novela e eu pude constatar que eu sou a Jade, a mulher que nunca esquece o Lucas por longos e incontáveis anos, que enfrenta as separações, as desavenças, a ausência dele, com a convicção de que o destino está traçado e que eles ficarão juntos em algum momento da vida que corre velozmente. Nunca me identifiquei tanto com uma personagem como me identifiquei com a Jade. Nunca me senti tão próxima da ficção como quando assisti a esta história de amor intensa, que a vida não tratou bem e com quem o destino brincou. Às vezes, no lugar da Jade, via-me a mim e no lugar do Lucas, via o meu Lucas. Era a nossa história representada na ficção. 
Mas, devido à generosidade do destino, no fim, depois de vinte anos, de viverem casamentos falhados, de ultrapassarem muitos obstáculos, o amor venceu e a palavra maktub pôde ser, finalmente, pronunciada.
   Hoje, nesta noite de véspera de Natal, é a minha vez de pronunciar a palavra maktub. 
   — Maktub. — digo, com a minha boca encostada ao ouvido do Lucas.
   — Já estava escrito. — responde, encarando-me, com os olhos a transbordarem de amor por mim. 
   As nossas roupas vão saindo dos nossos corpos suados enquanto o Marcus Viana canta «Somente por amor, a gente põe a mão, no fogo da paixão, e deixa se queimar, somente por amor, movemos terra e céus, rasgando sete véus, saltamos do abismo, sem olhar para trás, somente por amor, e a vida se refaz…»
   A lareira não consegue arder tanto como os nossos corpos ardem de paixão e desejo. Fundimo-nos um no outro como se fôssemos águas de dois rios que se encontram para correrem na mesma direção.
   O seu corpo encaixa na perfeição no meu.
   Os nossos suspiros são uníssonos. 
   Os nossos corações batem da mesma forma e com a mesma intensidade. 
   Isto é o amor na sua plenitude, na sua essência, no seu estado mais puro e genuíno. 
    Os nossos lábios não de desgrudam desde o primeiro beijo, as nossas mãos caminham livres pelo corpo nu um do outro, e os olhos, esses, são estrelas radiosas que diminuem o brilho de todas as luzes de Natal que nos rodeiam.
   Sinto que não foram só os nossos corpos que se encontraram esta noite; as nossas almas também. 
  — Sinto-me dentro de um sonho quando estou contigo. — sussurro. 
   — Estamos a viver o mesmo sonho hoje. — diz, sorrindo. 
   Pouso a minha cabeça no seu peito. 
   — Somos tão mal comportados. Nem jantámos. Fomos logo diretos para a sobremesa. — gargalha. 
   — E que maravilhosa sobremesa! — garanto, radiante. 
   — Foi bom? 
   — Foi incrível… 
   O Lucas deposita um beijo na minha cabeça. 
   Olho para fora das paredes de vidro. A neve continua a cair. Parece que o céu deu lugar a máquinas de flocos de neve. 
   — Vamos ver um filme? 
   — Posso escolher? 
   — Ui, já estou a ver. Vamos ver um drama romântico. — ri. 
   — Estava a pensar em seguir a tradição. 
   — Hã?! 
   — Então, não há Natal sem o ‘Sozinho em Casa’. 
   — Ah, claro! Pois, realmente. Esse filme é um clássico do Natal. 
   — Nunca me canso de ver. Já sei o filme de cor, mas nunca me canso. 
   — Põe lá o filme. 
   Passamos o resto da noite entre beijos apaixonados, abraços apertados, sonhos e rabanadas, carícias e filmes. Esta é, sem dúvida, a melhor véspera de Natal da minha vida. Não preciso de mais nada. Estou agarrada ao melhor presente que a vida me podia oferecer. 
   Não quero nem preciso de mais nada. 
   Para sempre, garanto.




Uma carta ao Pai Natal


   «Querido Pai Natal,
Os últimos Natais não foram fáceis. Estive sempre sozinha, mesmo estando com os meus pais, o meu irmão, e alguns amigos. Sentia-me sozinha, como se dentro e fora de mim só existisse um enorme deserto. Lembro-me de passar a noite de consoada e de Natal deitada no sofá, a olhar fixamente para as luzes da árvore de Natal, na esperança vã de que um milagre acontecesse e salvasse a minha vida da tristeza profunda onde ela parecia estar mergulhada. O Natal aflora os nossos sentimentos: se estamos numa fase feliz na vida, o Natal é mais feliz; se estamos numa fase mais delicada, o Natal fica mais triste. 
   Tive Natais difíceis, muito tristes, solitários, sem o mínimo de alegria. Mas, mesmo me sentindo deslocada do mundo, sempre fiz um esforço gigante para que a minha apatia não transparecesse para os que me rodeavam. Sei que nem sempre consegui. Acho que por muito que tentemos disfarçar a tristeza que, muitas vezes, nos invade, às vezes, torna-se muito difícil camuflá-la, ignorá-la, ou fingir que ela não existe. No ano passado, no dia de Natal, eu senti-me como se estivesse enfiada num rio, com uma corrente forte demais, onde estava a ser difícil manter-me à tona. Chorei muito, passei a consoada sozinha, não tive presentes, e à meia-noite estava enfiada num quarto escuro a chorar uma dor que me consumia e eu não sabia como me libertar dela. 
   Chorei, chorei, chorei, até que a dor aliviou.
   Eu sei que há Natais difíceis. Eu sei que, neste momento, pelo mundo fora, existe alguém que está a sentir-se num rio onde é difícil manter-se à tona, sei que há pais que estão a fazer o luto, que há famílias desavindas, que há pessoas que choram a ausência do grande amor das suas vidas, que há gente que trava uma luta contra o cancro, o covid, e tantas outras doenças que colocam em risco a nossa existência. Sei que, neste momento, alguém está a sentir-se sozinho, mesmo que tenha a casa cheia de pessoas e que, por muitos presentes que tenha recebido, a única coisa que desejava receber era alguém que já partiu ou que a vida levou para outro lado. Há quem só espere por um abraço e não o recebe. Há quem só quer a presença e não a tem.
  Pelo mundo inteiro, há pessoas que estão a passar o pior Natal das suas vidas. E é para essas pessoas que eu quero pedir uma coisa. 
   Esperança. 
   A vida é a esperança. E é ela a única coisa que nos resta quando nos sentimos nesse rio de correntes fortes que insiste em afundar-nos. É a esperança a nossa única bóia, a nossa única opção. E, por isso, quero, meu querido Pai Natal, que deposites no coração de todas essas pessoas uma boa dose de esperança. Porque Natais melhores virão, com certeza. E os problemas, esses resolver-se-ão. Os problemas da vida são como os problemas da matemática, por mais difíceis que sejam, têm solução . 
   O segredo para enfrentar as turbulências, as tempestades, os maus momentos, é só um: nunca desanimar, nunca deixar de confiar que um milagre pode acontecer, acreditar que a vida vai sair do buraco negro, que os problemas terão, todos, uma solução, e que a magia pode acontecer a qualquer um de nós. E é na esperança que está escondido esse segredo. E é por isso que peço esperança para todos. Porque foi a esperança que me guiou até aqui e é por ter-me agarrado a ela que hoje estou a passar o melhor Natal da minha vida. 
   E é também por isso que te escrevo, Pai Natal. 
  Hoje quero agradecer-te por este Natal que estás a oferecer-me. Estar com o Lucas é estar envolvida pela magia do Natal, embalada num sonho feliz impossível de descrever em palavras. 
   Obrigada, meu querido Pai Natal. 
   Serei eternamente grata por tudo.
   Espero que a esperança nos acompanhe a todos.
  E que nunca nos faltem as luzes de Natal para nos iluminar mesmo quando estamos diante de dores e tristezas. Principalmente, quando estivermos na escuridão. 
   Há sempre uma saída.
   Haverá sempre uma solução para tudo, hoje sei.
  E há milagres prestes a acontecer.»
   
  
    Termino de escrever a carta e guardo-a nas notas do meu iPhone. O Lucas ainda está mergulhado num sono profundo e eu estou encostada à parede de vidro a vislumbrar a neve que cai do céu. A serra está coberta por um incrível manto branco, a lareira aquece-me o corpo, e este lugar aconchega-me o coração. 
    Estou feliz. 
    Profundamente feliz. 
    — Bom-dia, meu amor. — saúda o Lucas, ainda ensonado. 
    — Bom-dia, príncipe. 
    — Afinal a noite de ontem não foi um sonho. 
    — O amor é um sonho. — respondo, sorrindo. 
    — Que nós vamos viver para sempre. — garante, sem falhas na voz. 
    — Acho que temos que agradecer ao Pai Natal por nos ter trazido de volta para a vida um do outro. 
    — Tens razão. E sabes como lhe podemos agradecer? 
    — Como? 
    — Sendo felizes. 
    O Lucas pega em mim ao colo e leva-me para o exterior da casa de vidro. 
    Atira-me bolas de neve e eu ataco-o da mesma forma. Entramos numa guerra sem fim até ficarmos extenuados. 
    Construímos um boneco de neve, com bolas gigantes, que rolaram pela serra abaixo. 
    Rimos muito, beijamo-nos muito, abraçamo-nos muito, sentimos muito. 
    Sei que não seremos sempre felizes como hoje e que iremos passar por turbulências, obstáculos, problemas e acontecimentos menos bons, mas eu também sei que independentemente do que aconteça, iremos permanecer para sempre juntos.
   Porque um grande amor nunca se quebra. 
   A vida nunca será capaz de destruir o que o Universo criou.
   E teremos sempre a eterna magia do Natal para nos trazer de volta um para o outro.  
   
Fim





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